sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A procura de nossa turma: A sensação de integração - Capítulo 6 - Mulheres que correm com os lobos

Olá pessoal, depois de mais de 2 meses do último post sobre o livro, retorno ao blog para falar um pouco sobre o capítulo seis do livro "Mulheres que correm com os lobos" de Clarissa Pinkola Estés.

Esse capítulo fala do conto do Patinho feio. Para ter acesso ao conto na íntegra, clique aqui

O que eu aprendi com esse conto? Primeiro eu chorei, chorei muito. Ao ler a interpretação da autora, temos lições clássicas do conto, mas também aprendizagens envolvendo os arquétipos do órfão e da mãe. Esse conto é uma ótima ferramenta para reconhecer a nós mesmos.

Arquétipo do órfão: um ser perdido, desamparado, negligenciado.



"Certifique-se agora de perder menos tempo com aquilo que eles não lhe deram e de dedicar mais tempo à procura das pessoas com quem você se sinta bem." 

Essa frase acima, se refere a quando não tivemos na infância pais amorosos, cuidadosos e sensíveis.

O patinho da história simboliza a natureza selvagem, que, quando forçada a enfrentar circunstâncias pouco propícias, luta instintivamente para continuar viva apesar de tudo.

Descobrir com certeza qual é a sua verdadeira família psíquica proporciona ao indivíduo a vitalidade e a sensação de pertencer ao um todo.

Na história as outras criaturas da comunidade declaram o patinho "feio" inaceitável, devido a sua aparência física. A princípio, a mãe pata defende o patinho, mas depois fica dividida "em termos emocionais" e deixa de se preocupar com o filhote estranho.

As meninas que tem uma forte natureza instintiva, muitas vezes passam por sofrimentos significativos no início da vida. Desde a época em que são bebês, são mantidas presas, domesticadas, e ouvem dizer que são inconvenientes e teimosas.

Geralmente, segundo a dra. Clarissa, o isolamento precoce começa sem que seja por nenhuma culpa da criança. É exacerbado pela incompreensão, crueldade da ignorância ou perversidade proposital dos outros. Assim, o self básico da psique é ferido desde cedo.

E aí a menina começa a acreditar que as imagens negativas dela mesma, refletidas pela família e pela cultura em que vive, são não só totalmente verdadeiras mas também isentas de preconceito, de influência da opinião e de preferências pessoais.

Os pais podem tentar fazer uma cirurgia psíquica na criança, quando essa é muito rebelde.

Nesse ponto aqui gostaria de chamar atenção: quando a cultura dita o que é desejável, tudo aquilo que não segue o plano são vistos como feio, inaceitáveis...

Vamos falar agora sobre os tipos das mães: (Falo sobre a mãe interior.)

No livro temos esses 3 tipos de mãe:

1) A MÃE AMBIVALENTE:

É a mãe que foi isolada dos seus instintos. Ela fica dividida entre defender o filhote ou mandá-lo embora e assim se livrar do escárnio sofrido.
A mãe curva-se aos desejos da comunidade em vez de se alinhar a favor do filho.

"Os filhos": devemos entendê-los como sendo a nossa arte, o amor, a política, a prole ou vida da alma.

A mãe com o filho diferente precisa ter RESISTÊNCIA, APARÊNCIA TERRÍVEL E A INSENSIBILIDADE.

Quando a mulher tem essa imagem de mãe ambivalente na sua própria psique, ela pode se descobrir cedendo com muita facilidade. Pode se descobrir com medo de firmar sua posição, de exigir respeito, de afirmar o seu direito a fazê-lo, de aprender, de viver do seu próprio modo.

Não existe meios para preparar a pessoa para isso, a não ser inspirar para que ela ganhe coragem e aja!

2) A MÃE PROSTRADA 

A mãe pata não aguenta mais a perseguição e então desiste. Ela diz ao patinho que preferia que ele desaparecesse, então ele foge. Quando uma mãe desiste, significa que ela perdeu o sentido de si mesma.

A autora fala que quando as pessoas caem prostradas, normalmente elas caem em um dentre três estados emocionais:

  • confusão; 
  • agitação (quando têm a impressão de que ninguém sente uma solidariedade adequada pela sua aflição);
  • abismo (uma reencenação emocional de antigas feridas, muitas vezes frutos de uma injustiça inexplicada e não corrigida perpretada contra elas ainda quando crianças). 
O meio para forçar a prostração de uma mãe consiste em dividi-la emocionalmente (tipo, escolher entre a cultura ou o próprio filho). 

Quando a mulher tem um constructo de mãe prostrada dentro da sua psique e/ou da sua cultura, ela é indecisa quanto ao seu valor. 

Não é normal sentar e ficar chorando. Devemos levantar e sair à procura do lugar a que pertençamos. 


3) A MÃE-CRIANÇA E A MÃE SEM MÃE 

É uma mãe muito simplória e ingênua.
O tipo mais comum de mãe frágil é de longe a da mãe sem mãe.
Características desse tipo de mãe é o medo de que não consiga criar bem os seus filhos. Ela pode ter um jeito infantilizado, tem também incapacidade de diferenciar as coisas e de ver de longe.
Usando o exemplo de Vasalisa, ela é boazinha e ingênua demais.


4) A MÃE FORTE, A PROLE FORTE

O remédio para todas consiste em obter cuidados de mãe para nossa própria mãe interna. A dra. Clarissa diz que isso se obtém com mulheres reais do mundo objetivo que sejam mais velhas, mais sábias e que tenham sido temperadas como o aço.

Segundo a autora, elas se tornaram calejadas por terem passado por tudo o que passaram, mas, independente do custo, seus olhos veem, seus ouvidos ouvem, suas línguas falam, e elas são gentis.

Ela diz que podemos ter inúmeras mães.

O que dizer da mulher que realmente passou por uma experiência com uma mãe destrutiva na própria infância?
Tranquilizem-se, vocês não estão mortas, vocês não sofreram danos letais.

As más companhias

O instinto de vaguear até encontrar o que ele precisa está em perfeito funcionamento. O defeito da síndrome do patinho feio está em continuar a bater nas portas erradas, apesar da experiência ruim antes.

Quando a mulher adquire uma atitude compulsiva (reencenando um comportamento frustrante), afim de diminuir o seu isolamento, ela está causando mal ainda maior, pois a ferida original não está sendo tratada.

"Mulheres diferentes escolhem tipos diferentes de "remédio errado". Algumas optam pelo que é obviamente inadequado, como as más companhias, os excessos nos prazeres que são prejudiciais e destrutivos da alma, e tudo que primeiro a incentiva e a coloca lá no alto para depois atirá-la no rés-do chão."

A aparência indevida:

Isso acontece quando o pato nada muito bem, mas nada de um jeito desengonçado. Isso acontece quando nós mulheres temos a aparência ótima, mas não estamos no nosso lugar e assim não conseguimos agir corretamente.

Nós agimos de um jeito que não fazemos nada certo quando vamos para o local errado, com pessoas erradas.

A autora dá um conselho, é bom abrir canais com pessoas de grupos e interesses distintos, mas é imperioso que não nos esforçamos demais.

Sentimentos congelados, criatividade congelada:

A mulheres as vezes lidam com o isolamento como o patinho feio preso no gelo. Elas congelam. Achando que ser frias é algo bom. Mas significa mais um ato de ira defensiva.

Uma atitude gélida inibirá a função criativa da mulher.

Qual a solução? SIGA EM FRENTE! SUPERE TUDO COM LUTA.

"Exerça sua arte. Sabe-se que o que está em movimento não se congela. Por isso: mexa-se!! Vá em frente."

O estranho que passava:

Nesse ponto é importante sublinhar que a pessoa que nos salva do fogo, precipício, das dificuldades, etc, nem sempre é do grupo a que pertencemos.

O isolamento como dádiva:

Aqui a autora fala que é pior ficar num grupo onde não nos sentimos bem do que vaguear perdida por um período em busca de afinidade psíquica e profunda do que precisamos.

As dádivas do isolamento são múltiplas:


  • Elimina a fraqueza com os golpes;
  • erradica as lamentações;
  • proporciona um insight penetrante;
  • aguça a intuição;
  • assegura o poder incisivo de observação e de visão de perspectiva jamais alcançada.
Os gatos desgrenhados e as galinhas vesgas do mundo:

Eles consideram as aspirações estúpidas e sem sentido. Trazendo pra nossa vida: é quando damos ouvidos a pessoas que dizem constantemente que somos teimosas, quando não conseguimos dizer: "Não, obrigada" e ir embora...

A lembrança e a persistência não importa o que aconteça:

Nesse momento, a autora fala que, apesar de nada estar dando certo, de apanhar, de quase morrer, de sofrer duros golpes, o patinho persiste e cai tremendo às margens do lado. Ela afirma que essa sensação já foi vivida por todas as mulheres, 

A principal característica da natureza selvagem é a persistência. 

Com o chegar da primavera, chega a vida nova.

O mais importante é esperar, aguentar esperando pela nossa vida criativa, pela nossa solidão, pelo nosso tempo de ser e de fazer... 

Depois do inverno, sempre vem a primavera. 

O amor pela alma:

Aguarde. Confie. Faça a sua parte. Você descobrirá seu próprio caminho. 


Nessa parte aqui a autora fala que a mulher que deixou de ser patinho feio passa a aceitar elogios de uma forma sincera. 


O zigoto errado:

Essa é uma história criada pela autora para contar às suas clientes. Era uma forma de clarear a questão da integração de uma forma mais leve e engraçada. 


Três respostas para a pergunta: "Por que comigo?? Por que esta família?? Por que sou tão diferente?"

Nascemos do jeito que nascemos e nas estranhas famílias a que pertencemos:

1) Porque sim
2) o Self tem um planejamento, e nossos cerébros de ervilha são ínfimos demais para desvendá-lo
ou
3) por causa da síndrome do zigoto errado

A história:


"A fada dos zigotos estava sobrevoando sua cidade natal numa noite, e todos os zigotinhos na sua cesta pulavam e saltavam de alegria.
Na verdade, você estava destinada a pais que a teriam compreendido, mas a fada dos zigotos entrou numa zona de turbulência e, epa, você caiu da cesta na casa errada. Você caiu de cabeça para baixo bem numa família que não lhe estava destinada. Sua "verdadeira" família ficava uns cinco quilômetros mais adiante."

A maioria acreditava nesse versão. Rsrs

Finalizando... Vicejar é o nosso destino na Terra.

Se você alguma vez foi chamada de desafiadora, incorrigível, saliente, esperta, insubmissa, indisciplinada, rebelde, você está no caminho certo. A Mulher Selvagem está por perto,

Boa leitura. 




quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

5 lições que aprendi com o filme "A vida secreta das abelhas"

Esse filme apesar de se tratar de temas pesados, tem uma estruturação que o torna leve! Tem tanta força e valor que enche de significados coisas do nosso cotidiano.

Para poder te situar, falo um pouco do cenário e da época em que a história foi tecida:

Cenário: interior dos Estados Unidos
Período: Década de 60

Nessa época o racismo era muito forte. Mesmo tendo sido aprovada a lei dos direitos civis dos negros, como o direito ao voto (lembra de Martin Luther King?), os negros sofriam forte rejeição e violência.

O filme começa com uma cena de briga entre o pai e mãe da personagem principal, Lily, então com apenas 4 anos de idade. Na cena, Lily mata a mãe, quando dispara (sem intenção, lógico) a arma.

Essa cena é uma lembrança (feed back) da Lily já púbere, com 13 anos de idade.

Já no comecinho a Lily relata ter visto um enxame de abelhas sobre sua cabeça. A menina, que até então se sentia culpada pela morte da mãe e, por isso, não merecedora do amor, sente alegria e fica super a vontade no meio das abelhas.

Mas as abelhas só são vistas pela Lily, ao chamar o seu pai, T. Ray, ele não consegue ver os insetos.

"As abelhas apareceram no verão de 1964, verão em que eu completava 14 anos. A minha vida toda começou a virar numa nova órbita." (Lily)

No desenlace da história, Lily, extremamente chateada com o abuso psicológico feito pelo pai, decide fugir acompanhada de Rosaleen, que trabalhava como sua babá e empregada da casa, após esta ter sido fortemente agredida por racistas.

1ª Lição: sobre amor-próprio e lealdade ao que somos:

Rosallen, é uma mulher forte, ela encarou "um branco" e não se deixou vencer, no entanto, apanha e fica bastante ferida. Ao ser perguntada por Lily porque ela não ficou calada e pediu desculpas para o homem branco, pois ficou em risco de morte, ela falou:


As duas caminham sem rumo e ao pararem para comprar comida, Lily vê potes de mel à venda que tem uma imagem parecida com a imagem que ela guardava dos antigos pertences de sua mãe. Intrigada, a menina vai em busca da casa das produtoras do mel e pede abrigo para ela e Rosaleen.

Nesta casa de cor de gosto duvidoso para os moradores da cidade, Lily e Rosaleen encontram três mulheres negras, cujos nomes são os meses do calendário: May, August e June.

Cada uma das três tinha uma personalidade diferente e forte. May era extremamente sensível e se comovia com facilidade com a dor do outro. Ela ficou assim após a morte de sua irmã gêmea, April. Para ajudar a irmã, August e June construíram o "muro das lamentações", assim, cada vez que May se entristecia com algo, ela ia ao muro e lá depositava um papel escrito com aquilo que a estava deixando triste.

2ª lição: Sobre sentir as dores do mundo e saber onde depositá-las:

Da personalidade de May, podemos aprender que podemos nos sensibilizar com a dor e depositar a nossa lamentação num local seguro.


3º lição: sobre como cada um sente sua própria dor:

Lily- Srta May, sei que as vezes você fica muito triste. Meu pai nunca sente nada. Nunca sentiu nada. Eu prefiro ser como você.

May- Uma abelha operária pesa menos que uma pétala de flor. Mas ela pode voar carregando um peso maior que o dela. Mas ela só vive durante quatro a cinco semanas. Às vezes não sentir nada é a única forma de sobreviver. 

A irmã responsável pela produção de mel era a August. Uma mulher com uma personalidade que irradia força, coragem e perseverança, mas ao mesmo tempo, amor. Muito amor e sabedoria.

Dos maiores ensinamentos de August do filme, destaco o da cena em que Lily confessa ter matado a sua mãe quando tinha 4 anos e que não se sente merecedora do amor dos outros.

4º lição: apesar do que tivermos vivido ou feito, por pior que tenha sido, temos o direito de amar e sermos amados:






As vezes, vamos ter que aceitar que nossa vida não é perfeita e que tivemos que vivenciar coisas duras e tristes, mas que temos o direito de sermos felizes.

A terceira irmã, é a June. ela é extremamente fria, durona. Quer manter a pose de pessoa independente. Mas em um momento do filme, ela se deixa aproveitar de lazer e diversão com as outras meninas e nesse momento, ela chora.

No final do filme, o pai de Lily a encontra e, nesse momento, revive a cena em que quer forçar a mãe de Lily a ficar com ele. Apesar da dificuldade de aceitar, ele concorda que a menina more com as irmãs produtoras de mel, falando a seguinte frase: "Que seja!"

5º lição: sobre como podemos interpretar o que está a nossa volta de forma mais saudável para nós mesmos


Nesse momento, apesar de não conseguir dizer com palavras completas, é assim que Lily interpreta:

"Ainda digo a mim mesma que, quando T. Ray  partiu naquele dia, ele não quis dizer: "que seja", ele quis dizer: 'Lily, você ficará melhor aqui, com todas essas mães'.

Conclusão:

Lily, apesar da pouca idade, foi uma menina sábia e bastante resiliente. Apesar do convívio com um pai infeliz e por consequencia, abusador, ela não viveu em codependência e resolveu seguir seu próprio rumo, em busca de sua felicidade. Já parou pra pensar em quantas situações infelizes ficamos, por medo do que nos possa acontecer? Lily foi corajosa e foi em busca daquilo que ela, racionalmente, ainda não compreendia.

Esse filme, demonstra mulheres que, apesar das feridas do mundo, conseguiram se fortalecer e florescer, ajudando umas às outras.



Isadora Gregório.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Conto O patinho feio

O patinho feio



Já estava quase na época da colheita. As velhas faziam bonecas verdes com a palha do milho. Os velhos remendavam cobertores. As moças bordavam flores de um vermelho vivo nos seus vestidos brancos. Os rapazes cantavam enquanto empilhavam o feno dourado. As mulheres tricotavam blusões ásperos para o inverno que viria. Os homens ajudavam a colher, arrancar, cortar e ceifar os frutos que os campos haviam produzido. O vento apenas começava a soltar as folhas um pouco mais, e mais um
pouco a cada dia que passava. E lá para os lados do rio, uma pata chocava uma ninhada de ovos.

Tudo estava indo como deveria para essa mãe pata e, afinal, um a um, os ovos começaram a tremer e sacudir até que as cascas racharam e deles saíram cambaleantes seus novos filhotes. Restava, porém, um ovo, um ovo muito grande. Ele estava ali parado como uma pedra.

Uma velha pata veio visitar, e a mãe pata exibiu seus filhotes.
— Eles não são lindos? — gabou-se ela. Mas o ovo ainda sem rachar chamou a atenção da velha pata, e esta tentou dissuadir a mãe de continuar a chocar aquele ovo.
— É um ovo de peru —exclamou a velha pata. — Absolutamente não serve como ovo. Não se pode levar um peru para dentro d'água, você sabia? — Ela sabia, porque já havia tentado.



A mãe pata, no entanto, achou que estava chocando há tanto tempo que mais um pouquinho não ia fazer mal.
— Não estou preocupada com isso — disse ela. — Mas você sabia que o safado do pai desses patinhos ainda não veio me visitar uma vez sequer?


Afinal, o ovo grande começou a estremecer e a rolar. Acabou quebrando, e dele saiu uma criatura grande e desajeitada. Sua pele era marcada por veias sinuosas azuis e vermelhas. Seus pés eram de um roxo claro. Seus olhos, de um rosa transparente.

A mãe pata inclinou a cabeça, esticou o pescoço e o contemplou. Não pôde se conter: ele era feio mesmo. "Talvez seja mesmo um peru", preocupou-se ela.



Contudo, quando o patinho feio entrou na água acompanhando os outros filhotes, a mãe pata viu que ele nadava muito bem. "É, ele é dos meus, apesar de ter essa aparência tão estranha. No fundo, porém, do ângulo certo... ele é quase bonito."


E assim ela o apresentou às outras criaturas do quintal da fazenda, mas, antes que percebesse, outro pato atravessou o quintal a toda e bicou o patinho feio bem no pescoço.
— Pare com isso! — gritou a mãe pata.
— Ora, ele é tão feio e esquisito. Ele precisa que o maltratem — retrucou o valentão.
— Oh, mais uma ninhada! Como se já não tivéssemos bocas demais a alimentar! — exclamou a pata rainha com o trapo vermelho na perna. — E aquele lá, aquele grandão e feio. Bem, aquilo sem dúvida é um engano.
— Ele não é um engano — disse a mãe pata. — Ele vai ser muito forte. Foi só que ele ficou tempo demais dentro do ovo e ainda está meio deformado. Mas ele vai se recuperar. Vocês vão ver. — Ela limpou com o bico as penas do patinho feio e lambeu seu topete.

Os outros, no entanto, faziam tudo o que podiam para importunar o patinho feio. Voavam para atacá-lo, bicavam-no e gritavam com ele. E à medida que o tempo passava, eles o atormentavam cada vez mais. Ele se escondia, se desviava, saía em ziguezague, mas não conseguia escapar. O patinho era a mais infeliz das criaturas.



A princípio, sua mãe o defendia, mas com o tempo até ela se cansou daquilo tudo.
Como eu queria que você fosse embora — exclamou exasperada. E foi assim que o patinho feio fugiu. Com a maior parte das suas penas arrancada e todo enlameado, ele correu e correu até chegar a um pântano. Ali ele se deitou à beira d'água com o pescoço esticado e sorvia um pouco d'água de vez em quando.

Dos juncos dois gansos o observavam. Eram jovens e cheios de si.
-- Ei, você aí, criatura horrorosa — disseram, rindo à socapa. — Quer vir conosco até o próximo condado? Há um bando de gansas solteiras por lá, prontas para serem escolhidas.
De repente, ecoaram tiros. Os gansos caíram com um baque e a água do pântano ficou vermelha com seu sangue. O patinho feio mergulhou para se abrigar, e por toda a parte só havia tiros, fumaça e cães latindo.

Afinal, o pântano ficou tranqüilo, e o patinho saiu correndo e voando a maior distância possível. Perto do anoitecer, ele chegou a um pobre casebre. A porta estava pendurada de um barbante, e havia mais fendas do que paredes. Ali vivia uma velha esfarrapada com seu gato desgrenhado e sua galinha vesga. O gato fazia jus a morar com a velha por apanhar camundongos. A galinha, por botar ovos.
A velha achou que estava com sorte por ter encontrado um pato. Talvez fosse uma pata e também botasse ovos e, se não fosse, podemos matá-lo para comer. E assim o pato ficou, mas ele era perseguido pelo gato e pela galinha.
Para que você serve se não bota ovos e não sabe apanhar camundongos? — perguntavam-lhe os dois.
— O que mais gosto de fazer — disse o patinho com um suspiro — é ficar "debaixo", quer seja debaixo da amplidão azul do céu, quer debaixo do frescor azul da água. — O gato não via nenhum sentido em querer ficar debaixo d'água e criticou o patinho pelos seus sonhos idiotas. A galinha não conseguia ver a graça de ficar com as penas molhadas e também debochou do patinho. No final das contas, ficou claro que aqui também não haveria paz para o patinho, e por isso ele partiu para ver se as coisas podiam ser melhores mais adiante.


Ele encontrou por acaso um laguinho e, enquanto estava nadando, foi ficando cada vez mais frio. Um bando de aves passou voando lá em cima, as mais lindas que ele já havia visto. Elas gritaram para cumprimentá-lo, e ouvir suas vozes fez com que o coração do patinho saltasse e se apertasse ao mesmo tempo. Ele gritou de volta com uma voz que nunca havia emitido antes. Ele nunca havia visto criaturas mais lindas, e nunca havia se sentido mais desolado.

Ele girou e girou na água para observá-las enquanto desapareciam nos céus e depois mergulhou até o fundo do lago e ali se aninhou, trêmulo. Estava fora de si por sentir um amor desesperançado por aqueles enormes pássaros brancos, um amor que ele não conseguia entender.

Um vento mais frio começou a soprar e foi ficando cada vez mais forte com o passar dos dias. E a neve caiu sobre o gelo. Os velhos quebravam o gelo nos baldes de leite, e as velhas fiavam até tarde da noite. As mães alimentavam três bocas de cada vez à luz de velas, e os homens saíam à procura de ovelhas sob o céu branco da meia noite.

Os jovens entravam na neve até a cintura para ir ordenhar, e as moças imaginavam ver o rosto de rapazes bonitos nas chamas do fogão enquanto cozinhavam. E no lago ali por perto, o patinho precisava nadar cada vez mais rápido em círculos para manter um lugar aberto no gelo.




Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer. Dois patos selvagens vieram voando e chegaram escorregando no gelo.
Eles observaram o patinho.
— Como você é feio — grasnaram. — Que pena. É uma tristeza. Não se pode fazer nada por alguém como você. — E saíram voando.

Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o patinho quebrando o gelo com seu cajado. Ele levantou o patinho, abrigou-o no casaco e voltou para casa. Na casa do lavrador, as crianças quiseram pegar o patinho, mas ele teve medo. Voou até os caibros do telhado, fazendo com que toda a poeira caísse na manteiga. De lá de cima, ele mergulhou direto para dentro do balde de leite e, quando ia saindo todo molhado e grudento, caiu no barril de farinha de trigo. A mulher do lavrador saiu
atrás dele com uma vassoura enquanto as crianças riam a mais não poder.

O patinho saiu agitado pela porta do gato e, lá fora afinal, caiu quase morto na neve. Dali, ele se forçou a prosseguir até chegar a mais um lago, a mais uma casa, a outro lago, a outra casa, e o inverno inteiro transcorreu dessa forma, alternando entre a vida e a morte.



Mesmo assim, a brisa suave da primavera voltou. As velhas vieram arejar os acolchoados, e os velhos guardaram suas ceroulas compridas. Novos bebês chegavam no meio da noite, enquanto seus pais andavam de um lado para o outro no quintal, debaixo do céu estrelado. Durante o dia, as moças enfiavam narcisos nos cabelos, e os rapazes examinavam os tornozelos femininos. E num lago por ali, a água ficou mais agradável e o patinho feio que nela boiava abriu as asas.

Como eram grandes e fortes as suas asas. Elas o levaram bem para o alto acima da terra. Dos céus, ele via os pomares com seus mantos brancos, os lavradores arando, os jovens de toda a natureza saindo da casca, tropeçando, zumbindo e nadando. Também brincando na água do lago havia três cisnes, as mesmas criaturas maravilhosas que ele havia visto no outono; aquelas que lhe haviam causado um aperto tão forte no coração. Ele sentiu um impulso de se unir a elas.

E se fingirem que gostam de mim, e depois, assim que eu me aproximar, saírem voando às risadas? pensou o patinho. Ele desceu planando e pousou no lago, com o coração batendo forte.



Assim que o viram, os cisnes começaram a nadar na sua direção. Sem dúvida, estou a ponto de encontrar meu fim, pensou o patinho, mas, se tenho de ser morto, melhor que seja por essa lindas criaturas do que pela mão de caçadores, donas-de-casa ou longos invernos. E abaixou a cabeça para aguardar os golpes.

Que surpresa! Na imagem na água ele viu um cisne em traje a rigor: plumagem branca como a neve, olhos escuros e tudo o mais. O patinho feio a princípio não se reconheceu porque era exatamente igual aos belos estranhos, igual àqueles que ele havia admirado de longe.

E acabou se revelando que ele era um deles no final das contas. Seu ovo por acaso havia rolado para um ninho de patos. Ele era um cisne, um cisne magnífico. E pela primeira vez sua própria família se aproximava dele, tocando-o com cuidado e carinho com as pontas das asas. Eles lhe limparam as penas com seus bicos e nadaram muito ao seu redor para cumprimentá-lo.
— Ei, tem mais um cisne! — gritaram as crianças que vinham trazer migalhas de pão para os cisnes.

Como costumam fazer as crianças de qualquer lugar, elas correram para contar a todos. As velhas vieram até a beira d'água, destrançando seus longos cabelos prateados. Os rapazes juntavam nas mãos em taça um pouco da água limpa e a atiravam na direção das moças, que enrubesciam como pétalas. Os homens tiraram uma folga da ordenha só para tomar um pouco daquele ar. As mulheres pararam um pouco de remendar só para rir com seus parceiros. E os velhos começaram a contar histórias sobre como a guerra é longa e a vida é curta.

E um a um, fosse pela vida, pela paixão, fosse porque o tempo estava passando, todos se afastaram dançando. Os rapazes, as moças, todos foram embora dançando. Os mais velhos, os maridos, as esposas, todos foram embora dançando. As crianças e os cisnes também se afastaram dançando... deixando ali só nós... a primavera... e mais uma mãe pata chocando seus ovos junto ao rio.

Do Livro Mulheres que correm com os lobos

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Pele de foca, pele de alma - Capítulo 9 - Mulheres que correm com os lobos


A volta ao lar: O retorno ao próprio Self




"A história nos fala de onde realmente viemos, do que somos feitas e de como todas nós precisamos, com regularidade, usar nossos instintos e descobrir o caminho de volta ao lar."

No dia 06 desse mês tivemos o encontro de mulheres e discutimos sobre o capítulo 9 do livro Mulheres que correm com os lobos. Abaixo uma foto sobre o encontro. Está com quatro meses que iniciei a leitura desse livro.


A sensação que tenho é que a leitura, apesar de parecer aleatória, entra em sintonia com o que tenho vivenciado. O Universo é mágico!!!

Esse foi o capítulo mais rabiscado de todos os tempos!!! Hahaha

Uma coisa importante que temos que sempre fazer ao ler os textos de Clarissa é: tente ser todos os personagens da história: a mulher foca, Ooruk (o ser medial), e também seja o caçador solitário...

Como é ser cada um deles?

Resuminho...

A história fala de uma mulher foca que estava junto de suas irmãs/amigas focas, mas ela por um momento de descuido fica longe da sua pele de foca, aí o caçador solitário vem e pega a pele, e diz que só devolve a pele à mulher-foca se ela passar 7 verões com ele. Ela então aceita, fica esse período com ele e juntos têm um filho. Mas aí a mulher-foca começa a secar, fica tipo triste, com os olhos sem brilho e percebe que "está na hora de voltar pro lar". E esse é um dos principais ensinamentos do conto, que precisamos de tempos em tempos retornar para o nosso lar espiritual.
Para ler o conto na íntegra, clique aqui



Destrinchando o capítulo:

Pontos principais: 

A perda do sentido de alma como iniciação:

"Como a mulher-foca da história, e como a alma de mulheres jovens e/ou inexperientes, ela não percebe as intenções dos outros e o perigo em potencial. E é sempre aí que a pele da foca é roubada."

Como é esse roubo da pele? Pele é como se fosse uma proteção. A dra Clarisse diz que algumas pessoas dizem que é como se fosse um "roubo da sua 'grande oportunidade' da vida". Outros descrevem o fato como "uma distração, uma ruptura, uma interferência ou interrupção de algo que lhes é vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços."

O roubo cai nas mulheres em virtude da ingenuidade, da percepção falha quanto às motivações dos outros.

Ela diz que as pessoas que permitem ser roubadas não são más, nem erradas, nem tolas, elas são inexperientes! Estão num "cochilo psíquico".

Nesse momento, a mulher pode decidir RESGATAR O TESOURO, reabastecendo o self.

Quatro constructos vitais da psique:

1) Fortalece extremamente nossa determinação de lutar pelo resgate do inconsciente;
2) Esclarece, com o passar do tempo, o que é mais importante para nós;
3) Ele nos preenche com a necessidade de ter um plano para nos libertarmos, em termos psiquicos ou outros, e de pôr em cena nossos conhecimentos recém-adquirido.
4) Desenvolve nossa natureza medial, aquela parte selvagem e sagaz da psique que também pode permear o mundo da alma e o mundo dos humanos.



"Uma das questões mais cruciais e de maior potencial destrutivo enfrentadas pelas mulheres consiste no fato de elas começarem vários processos de iniciação psicológica sem iniciadores que tenham eles próprios completado o processo. Elas não conhecem pessoas maduras que saibam como prosseguir. Quando os próprios iniciadores são pessoas cuja iniciação está incompleta, eles omitem aspectos importantes do processo sem perceber, e às vezes causam grandes males ao iniciando por trabalharem com uma ideia fragmentada da iniciação, uma idéia que freqüentemente está contaminada de uma forma ou de outra."

A perda da pele:

"Toda mulher afastada do lar da sua alma acaba se cansando. É então que ela procura sua pele de foca para revitalizar seu sentido de identidade e de alma, para restaurar seu conhecimento penetrante e
oceânico."

E quando é que perdemos a pele da alma?



"Perdemos a pele da alma quando ficamos muito envolvidas com o ego, quando nos tornamos por demais exigentes, perfeccionistas, quando nos martirizamos desnecessariamente, somos dominadas por uma ambição cega ou quando nos sentimos insatisfeitas — com o próprio self, com a família, a comunidade, a cultura, o mundo — e não fazemos nem dizemos nada a respeito disso; também quando fingimos ser uma fonte ilimitada para os outros quando não fazemos o possível para nos ajudar. Ora, existem tantos modos para se perder a pele da alma quantas são as mulheres do mundo."

"O único meio de permanecer agarrada a essa essencial pele da alma consiste em manter uma conscientização delicadamente imaculada a respeito dos seus valores e utilidades."

O homem solitário:

O homem representa o ego da psique da mulher. Clarissa afirma que no início da vida é o ego que que frequentemente manda. "Ele relega a alma aos trabalhos mesquinhos da cozinha."

"No entanto, em algum ponto, às vezes quando estamos com vinte anos, às vezes com trinta, com maior freqüência aos quarenta anos, muito embora algumas mulheres só estejam realmente prontas depois dos cinqüenta, dos sessenta ou mesmo dos setenta ou oitenta, começamos, afinal, a permitir que a alma assuma o comando. O poder passa, então, dos detalhes e minúcias práticas para o envolvimento da alma."

A criança espiritual:

A criança é o resultado da união entre o ego e a alma. A criança (Ooruk) tem a capacidade de ouvir o chamado.


É um ser medial.

O definhamento e a invalidez:

"A maioria das depressões, tédios e confusões errantes da mulher é causada por uma severa restrição da vida da alma, na qual a inovação, o impulso e a criatividade são proibidos ou limitados."

Nessa parte Clarissa coloca uma história que se quiser ler na íntegra, coloco aqui: O terno

Clarissa fala que a atitude o segundo velho é uma coisa natural, a mulher precisa manter uma postura impecável, mesmo que para isso precise ficar aleijada.

Ouvindo o chamado da Mais Velha:

Na história quem ouve o chamado é a "pequena criança espiritual".

"A inquietação da mulher durante esse período vem muitas vezes acompanhada de irritabilidade e de uma sensação de que tudo está perto demais para ser agradável, ou longe demais para nos proporcionar paz. Ela se sente de alguma forma pouco e muito "perdida", pois ficou muito tempo longe de casa."

A demora excessiva:

"Quando a mulher passa tempo demais longe de casa, sua capacidade de perceber como está se sentindo a respeito de si mesma e de todas as outras coisas começa a secar e a rachar. Ela está no "estado de lemingue"."

"Quando a mulher fica muito tempo longe do seu lar, ela se torna cada vez menos capaz de avançar na vida. Em vez de optar por arreios de sua própria escolha, ela como que fica pendurada na vontade dos outros."

"A "ninhada morta" é composta de ideias, deveres, exigências que não funcionam, que não têm vida e que não geram vida. Uma mulher assim torna-se pálida, apesar de briguenta; passa a ser cada vez mais inflexível, embora dispersa. Seu pavio vai ficando cada vez mais curto."

"Uma mulher de iniciação incompleta nesse estado de privação acredita erroneamente obter maior vantagem espiritual ficando do que indo embora."

A mulher precisa entender essa necessidade por si mesma. E essa volta da mulher ao lar espiritual permite aos outros que eles também busquem isso. Elas precisam voltar ao lar espiritual mesmo que isso irrite aos outros, pois ela volta mais forte.

A separação, o mergulho:

No momento de volta ao lar, volte. Quando está na hora, está na hora.

"Todas nós temos nossos métodos preferidos para nos convencer a não tirar o tempo necessário para a volta ao lar. No entanto, quando resgatamos nossos ciclos instintivos e selváticos, ficamos sob a obrigação psíquica de organizar nossa vida para que possamos vivê-la cada vez mais em harmonia."

"Por quanto tempo a pessoa fica no lar espiritual? O máximo de tempo possível, ou até que você seja novamente dona de si mesma. Com que freqüência é necessária essa volta? Com uma freqüência muito maior se você for uma pessoa "sensível" e muito ativa no mundo objetivo. Algo menos se você for um pouco insensível e não se "expuser" tanto."

A mulher medial: A que respira debaixo d'água:

A mulher medial se posiciona entre o mundo da realidade consensual e o do inconsciente místico, fazendo mediação entre eles. Ela é o transmissor e o receptor entre dois ou mais valores ou idéias.

Um dos efeitos da regularidade na volta ao lar está no fato de a mulher medial da psique sair fortalecida toda vez que a mulher vai e volta.

A volta à superfície:

Devemos voltar à nossa vida diária impregnadas por um novo ânimo!

A prática da solidão voluntária:

Serve para curar a fadiga e evitar o cansaço...

Como podemos invocar a alma? "Há muitas formas: pela meditação, pelos ritmos da corrida, do toque de tambor, do canto, do ato de escrever, da pintura, da composição musical, de visões de grande beleza, da oração, da contemplação, dos ritos e rituais, de ficar parada e até mesmo de idéias e disposições de ânimo arrebatadoras."

"Há muitos aspectos da nossa vida que devemos avaliar com constância: o ambiente, o trabalho, a vida criativa, a família, o parceiro, os filhos, mãe/pai, a sexualidade, a vida espiritual e assim por diante."

A ecologia inata às mulheres:

"Mesmo que tenhamos trabalhado, feito sexo, descansado ou brincado fora dos ciclos, isso não mata a Mulher Selvagem; só nos deixa exaustas."

"É com o amor e o cuidado com nossas fases naturais que protegemos nossa vida para que ela não seja arrastada pelo ritmo de outra pessoa, pela dança de outra pessoa, pela fome de outra pessoa."

"Culturas excessivamente civilizadas e repressoras tentam impedir as mulheres de voltar para
casa."

Finalizo com: Nas palavras de Jung, "seria muito melhor simplesmente admitir nossa pobreza espiritual. ...Quando o espírito fica pesado, ele se transforma em água. ...Portanto, o caminho da alma... conduz à água"

O que eu entendi das palavras de Jung? Nada... Mas o capítulo 10 (próximo em ordem) é "Águas claras" pode ser que dra Clarissa me explique!!! :)

Boa leitura!!!

O terno - História complementar do capítulo 9



Um homem veio a um szabó, alfaiate, para experimentar terno. Parado diante do espelho, ele percebeu que o colete estava um pouco irregular na parte inferior.
— Ora — disse o alfaiate. — Não se preocupe com isso. Basta você puxar a ponta mais curta para baixo com a mão esquerda, que ninguém jamais vai perceber nada.

Enquanto o cliente fazia exatamente isso, ele notou que a lapela do paletó estava com uma ponta enrolada em vez de estar rente.
— Isso? — perguntou o alfaiate. — Isso não é nada. É só você virar a cabeça um pouquinho e segurar a lapela no lugar com o queixo.

O freguês obedeceu e, quando o fez, observou que a costura de entrepernas estava meio curta e que o gancho lhe parecia um pouco apertado demais.
— Ora, nem pense nisso. Puxe o gancho para baixo com a mão direita, e tudo vai ficar perfeito. — O freguês concordou e comprou o terno.

No dia seguinte, o homem estreou o terno com todas as alterações de queixo e mãos. Enquanto ia mancando pelo parque com o queixo segurando a lapela no lugar, uma das mãe puxando o colete, e a outra mão agarrada ao gancho, dois velhos pararam de jogar damas para vê-lo passando com dificuldade.
— M'Isten, meu Deus! — disse o primeiro velho. — Veja aquele pobre aleijado.
O segundo homem refletiu por um instante antes de sussurrar.
— Igen, é, ele é bem aleijado mesmo, mas sabe o que eu queria saber... onde será que ele comprou um terno tão elegante?

Do livro Mulheres que correm com os lobos

Conto Pele de foca, pele da alma

Pele de foca, pele da alma

Houve um tempo, que passou para sempre e que irá logo estar de volta, em que um dia corre atrás do outro de céus brancos, neve branca... e todos os minúsculos pontinhos escuros ao longe são pessoas, cães, ou ursos.

Nesse lugar, nada viceja gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas se acostumaram a trazer consigo seus parkas, mamleks e botas, já de propósito. Nesse lugar, as palavras se congelam ao ar livre, e frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios de quem fala e descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que foi dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha Annuluk, a avó, a velha feiticeira que é a própria Terra. E foi nessa terra que vivia um homem...
um homem tão solitário que, com o passar dos anos, as lágrimas haviam aberto fundos abismos no seu rosto.

Ele tentava sorrir e ser feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia bem. No entanto, sentia falta de companhia. Às vezes, lá nos bancos de areia, no seu caiaque, quando uma foca se aproximava, ele se lembrava de antigas histórias sobre como as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia nessas ocasiões uma solidão tão profunda que as lágrimas escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.

Uma noite ele caçou até depois de escurecer, mas sem conseguir nada. Quando a lua subiu no céu e as banquisas de gelo começaram a reluzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no mar e seu olhar aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos sobre a velha rocha.

Ele remou lentamente e com os remos bem fundos para se aproximar, e lá no alto da rocha imponente dançava um pequeno grupo de mulheres, nuas como no primeiro dia em que se deitaram sobre o ventre da mãe. Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano a não ser na lembrança — e ele ficou ali olhando. As mulheres pareciam seres feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com
gotículas prateadas como as do salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e graciosos.



Elas eram tão lindas que o homem ficou sentado, atordoado, no barco, e a água nele batia, levando-o cada vez mais para junto da rocha. Ele ouvia o riso magnífico das mulheres... pelo menos elas pareciam rir, ou seria a água que ria às margens da rocha? O homem estava confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e, quase sem pensar, como se fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou uma das peles de
foca ali jogadas. Ele se escondeu por trás de uma saliência rochosa e ocultou a pele de foca dentro do seu qutnquq, parka.

Logo, uma das mulheres gritou numa voz que era a mais linda que ele já ouvira... como as baleias chamando na madrugada... ou não, talvez fosse mais parecida com os lobinhos recém-nascidos caindo aos tombos na primavera... ou então, não, era algo melhor do que isso, mas não fazia diferença porque... o que as mulheres estavam fazendo agora?

Ora, elas estavam vestindo suas peles de foca, e uma a uma as mulheres-focas deslizavam para o mar, gritando e ganindo de felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas procurava por toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar nenhum. O homem sentiu-se estimulado — pelo quê, ele não sabia. Ele saiu de trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
— Mulher... case-se... comigo. Sou um... homem... sozinho.
— Ah — respondeu ela. — Eu não posso me casar, porque sou de outra natureza, pertenço aos que vivem temeqvanek, lá embaixo.
— Case-se... comigo — insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.



A jovem mulher-foca ficou olhando muito tempo o rosto do homem com olhos que, se não fossem suas origens verdadeiras, pareciam humanos.
— Irei com você — disse ela, relutante. — Dentro de sete verões, tomaremos a decisão.

E assim, com o tempo, tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk. A criança era ágil e gorda. No inverno, a mãe contava a Ooruk histórias de seres que viviam no fundo do mar enquanto o pai esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a mãe levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da ventilação as nuvens e todas as suas formas. Só que, em vez de falar das formas do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias da vaca-marinha, da baleia,
da foca e do salmão... pois eram essas as criaturas que ela conhecia.

No entanto, à medida que o tempo foi passando, sua pele começou a ressecar. A princípio, ela escamou e depois passou a rachar. A pele das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo da sua cabeça, a cair no chão. Ela se tornou naluaq, do branco mais pálido. Suas formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse, iam ficando mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear porque sua vista estava escurecida.

E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.

— Você escondeu minha pele de foca há sete longos anos, e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que me seja devolvido aquilo de que sou feita — gritou a mulher-foca.
— E você, mulher — vociferou o marido. — Você me deixará se eu lhe der a pele.
— Não sei o que eu faria. Só sei que preciso daquilo a que pertenço.
— E você me deixaria sem mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.

Com essas palavras, o marido afastou com violência a pele da porta e desapareceu noite adentro.

O menino adorava a mãe. Ele tinha medo de perdê-la e, por isso, chorou até dormir... só para ser acordado pelo vento. Um vento estranho... que parecia chamá-lo.
— Oooruk, Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluks até a metade. Ao ouvir seu nome chamado insistentemente, ele saiu correndo na noite estrelada.
— Ooooooorukkk.

O menino correu até o penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme.

Seus bigodes lhe caíam até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
— Ooooooorukkk.

O menino foi descendo o penhasco de qualquer jeito e bem junto à base tropeçou numa pedra, não, numa trouxa, que rolou de uma fenda na rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto como milhares de açoites de gelo.
— Ooooooorukkk.



O menino abriu a trouxa e a sacudiu: era a pele de foca da sua mãe. Ah, ele sentia seu perfume na pele inteira. E, enquanto mergulhava o rosto na pele de foca e respirava seu cheiro, a alma da mãe penetrava nele como um súbito vento de , verão
— Ah — exclamou ele com alegria e dor, e levou novamente a pele ao rosto.

Mais uma vez, a alma da mãe passou pela dele. — Ah!!! — gritou ele de novo, porque estava sendo impregnado pelo amor infindo da mãe.

E a velha foca prateada ao longe mergulhou lentamente para debaixo d'água.

O menino escalou o penhasco, voltou correndo para casa com a pele de foca voando atrás dele e se jogou para dentro de casa. Sua mãe contemplou o menino e a pele e fechou os olhos, cheia de gratidão pelo fato de os dois estarem em segurança.

Ela começou a vestir sua pele de foca.
— Ah, mãe, não! — gritou o menino. Ela apanhou o menino, ajeitou-o debaixo do braço e saiu correndo aos trambolhões na direção do mar revolto.
— Ai, mamãe, não me abandone! — implorava Ooruk. E logo dava para se ver que ela queria ficar com o filho, queria mesmo, mas alguma coisa a chamava, algo que era mais velho do que ele, mais velho do que ela, mais antigo que o próprio tempo.
— Ah, mamãe, não, não, não — choramingou a criança. Ela se voltou para ele com uma expressão de profundo amor nos olhos. Segurou o rosto do menino nas mãos e soprou para dentro dos pulmões do menino seu doce alento, uma vez, duas, três vezes. Depois, com o menino debaixo do braço como uma carga preciosa, ela mergulhou bem fundo no mar e cada vez mais fundo. A mulher-foca e seu filho não tinham dificuldade para respirar debaixo d'água.


Eles nadaram muito para o fundo até que entraram no abrigo subaquático das focas, onde todos os tipos de criaturas estavam jantando e cantando, dançando e conversando, e a enorme foca prateada que havia chamado Ooruk de dentro do mar da noite abraçou o menino e o chamou de neto.
— Como você está se saindo lá em cima, minha filha? — perguntou a grande foca prateada.

A mulher-foca afastou o olhar e respondeu.
— Magoei um ser humano... um homem que deu tudo para que eu ficasse com ele. Mas não posso voltar para ele, porque, se o fizer, estarei me transformando em prisioneira.
— E o menino? — perguntou a velha foca. — Meu neto? — Ele estava tão orgulhoso que sua voz tremia.
— Ele tem de voltar, meu pai. Ele não pode ficar aqui. Ainda não chegou o seu tempo de ficar conosco. — Ela chorou. E juntos eles choraram.



E assim passaram-se alguns dias e noites, exatamente sete, período durante o qual voltou o brilho aos cabelos e aos olhos da mulher-foca. Ela adquiriu uma bela cor escura, sua visão se recuperou, seu corpo voltou às formas arredondadas, e ela nadava com agilidade. Chegou, porém, a hora de devolver o menino à terra. Nessa noite, o avô-foca e a bela mãe do menino nadaram com a criança entre eles. Vieram subindo, subindo de volta ao mundo da superfície. Ali eles depositaram Ooruk
delicadamente no litoral pedregoso ao luar.

— Estou sempre com você — afiançou-lhe sua mãe. — Basta que você toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu, faca, minhas esculturas de pedra de focas e lontras, e eu soprarei nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas canções.

A velha foca prateada e sua filha beijaram o menino muitas vezes. Afinal, elas se afastaram, saíram nadando mar adentro e, com um último olhar para o menino, desapareceram debaixo d'água. E Ooruk, como ainda não era a sua hora, ficou.

Com o passar do tempo, ele cresceu e se tornou um famoso tocador de tambor, cantor e inventor de histórias. Dizia-se que tudo isso decorria do fato de ele, quando menino, ter sobrevivido a ser carregado para o mar pelos enormes espíritos das focas.

Agora, nas névoas cinzentas das manhãs, ele às vezes ainda pode ser visto, com seu caiaque atracado, ajoelhado numa certa rocha no mar, parecendo falar com uma certa foca fêmea que freqüentemente se aproxima da orla. Embora muitos tenham tentado caçá-la, sempre fracassaram. Ela é conhecida como Tanqigcaq, a brilhante, a sagrada, e dizem que, apesar de ser foca, seus olhos são capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas.

Do Livro Mulheres que Correm com os Lobos

A mulher esqueleto - Capítulo 5 - Mulheres que correm com os lobos

A caçada: Quando o coração é um caçador solitário

A Mulher-esqueleto: encarando a natureza de vida-mortevida
do amor

Para ler o conto clique aqui

Diferentemente dos seres humanos, os lobos não consideram que os altos e baixos da vida, quer de energia, de poder, de alimento, quer de oportunidade, sejam espantosos ou punitivos.

A natureza instintiva tem a capacidade miraculosa de sobreviver a cada dádiva positiva, a cada conseqüência negativa, e ainda manter o relacionamento com o self e com o outro.

As histórias das regiões próximas ao pólo descrevem o amor como a união entre dois seres cuja força
reunida permite a um deles, ou a ambos, a entrada em comunicação com o mundo da alma e a participação no destino como uma dança com a vida e a morte.

Existem, porém, exigências para esse tipo de união. A fim de criar esse amor duradouro, convida-se mais um parceiro para a união. Esse terceiro é a Mulher esqueleto. Ela é também chamada de A Morte e, nesse sentido, ela é a natureza da vida-morte-vida num dos seus muitos disfarces. Nessa sua apresentação, A Morte não é um mal. mas uma divindade.

O conto é uma antiga história do povo inuit, e nele estão os estágios psíquicos para o domínio desse abraço (com a mulher esqueleto).

Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria, da Mulher esqueleto.

Parei de escrever esse post aqui no dia 18 de setembro e retorno somente hoje, dia 23 de outubro... Parei porque estava muito focada nos estudos, nesse intervalo, fui a um encontro de mulheres e li o capítulo 9 (Pele de foca), é incrível como os capítulos estão fluindo bem com os acontecimentos dos meus dias e do meu crescimento pessoal...

Bom, o que é esse capítulo? Esse capítulo fala que o amor é quando encaramos a Mulher Esqueleto, é quando vemos que nos relacionamentos existe sempre algo que você não deseja, não quer, sente repulsa... Achei tão forte o capítulo e chorei quando li, porque percebi que eu e meu companheiro conhecemos o pior de cada um de nós e mesmo assim, amamos um ao outro e mesmo assim admiramos.

Finalizo o post com esse trecho do livro:

"Parece tão repulsivo, mas esse é o momento perfeito em que se apresenta uma verdadeira oportunidade de demonstrar coragem e de conhecer o amor. 

Amar significa ficar com. 

Significa emergir de um mundo de fantasia para um mundo em que o amor duradouro é possível, cara a cara, ossos a ossos, um amor de devoção.

Amar significa ficar quando cada célula nos manda fugir."



segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Conto A mulher esqueleto

A mulher esqueleto



Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.


O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!" Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. — Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.


O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.
— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!



Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

Do Livro Mulheres que correm com os lobos.

Manawee - Capítulo 4 - Mulheres que correm com os lobos

O parceiro: A união com o outro
Um hino para o Homem Selvagem: Manawee

Esse capítulo é muito fofinho. Como eu demorei a escrever sobre ele, algumas coisas cairam no esquecimento, no entanto, acho isso benéfico, pois assim, focarei no que realmente for importante.

Para ler o conto (oriento) clique aqui

Ensinamentos importantíssimos do livro:


  • Não podemos cair nas armadilhas. Se quisermos chegar a um lugar, precisamos manter o nosso foco;
  • precisamos estarmos atentas e fortes para lutar contra o estranho sinistro;
  • o estranho sinistro vai tentar arrancar de nós a sabedoria.

A natureza dual das mulheres

Partes que destaco:

Essa história fala do mistério de duas poderosas forças femininas numa única mulher.

O ser exterior vive à luz do dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática,
aculturada e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e com freqüência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma sensação: algo de surpreendente, original e sagaz.

Da mesma forma, a mulher tem enormes poderes quando os aspectos duais individuais são reconhecidos consciente-mente e considerados como uma unidade; mantidos unidos em vez de separados. O poder de ser dois é muito forte, e nenhum dos dois lados deve ser negligenciado. Eles precisam ser alimentados da mesma forma, pois juntos proporcionam ao indivíduo um poder excepcional.

Na história, o pai das gêmeas age como guardião do par místico. Ele simboliza uma característica intrapsíquica real que garante a integridade de coisas que "ficam juntas" e que não são separadas. É ele que testa o valor, a "correção" do pretendente. Ter um guardião desse tipo é bom para as mulheres.

Uma psique saudável que contenha um guardião paternal não aceita simplesmente qualquer pensamento, atitude ou pessoa, apenas aquelas que são sensíveis ou que se esforçam para sê-lo.

A sedução furtiva dos apetites

Não é por acaso que homens e mulheres se esforçam para descobrir o lado mais profundo da sua natureza e, no entanto, têm sua atenção desviada por inúmeras razões, em sua maioria prazeres de diversos tipos. Alguns tornam-se dependentes dessas preferências e ficam para sempre enredados nelas, sem conseguir jamais continuar seu trabalho.

O cãozinho a princípio também é distraído pelo seu apetite. Os apetites são muitas vezes forajidos pequenos e encantadores, ladrões, dedicados ao roubo do tempo e da libido.


Jung observou que é preciso impor algum controle aos apetites humanos.

Podem se esquecer do que os motivava a agir.

Existem elementos na psique de todo mundo que são traiçoeiros, trapaceiros e maravilhosos. Esses elementos são inimigos da conscientização. Eles vicejam por manter tudo oculto e excitante.

A lembrança da verdadeira tarefa e sua repetida recordação dentro de nós mesmas, no estilo de um mantra, nos devolverá a consciência.

A conquista da ferocidade

O estranho sinistro pode ser encarnado por uma pessoa verdadeira no mundo exterior ou por um complexo negativo interno. Não importa qual seja a apresentação, o efeito devastador é o mesmo.

Isso pode ocorrer na vida objetiva quando um incidente, um lapso, algum acontecimento estranho de
qualquer natureza, surge de repente e tenta nos fazer esquecer quem nós somos.

Às vezes o único meio de aprendermos a nos manter fiéis ao nosso conhecimento profundo resulta do surgimento desse estranho à nossa frente. Somos, então, forçadas a lutar pelo que prezamos — lutar para ter firmeza naquilo a que nos dedicamos, lutar para superar nossas motivações espirituais mais superficiais, o que Robert Bly chama de "desejo de se sentir maravilhoso", lutar para terminar o que iniciamos.

Mulheres que correm com os lobos