segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Conto A mulher esqueleto

A mulher esqueleto



Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.


O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!" Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. — Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.


O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.
— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!



Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

Do Livro Mulheres que correm com os lobos.

Manawee - Capítulo 4 - Mulheres que correm com os lobos

O parceiro: A união com o outro
Um hino para o Homem Selvagem: Manawee

Esse capítulo é muito fofinho. Como eu demorei a escrever sobre ele, algumas coisas cairam no esquecimento, no entanto, acho isso benéfico, pois assim, focarei no que realmente for importante.

Para ler o conto (oriento) clique aqui

Ensinamentos importantíssimos do livro:


  • Não podemos cair nas armadilhas. Se quisermos chegar a um lugar, precisamos manter o nosso foco;
  • precisamos estarmos atentas e fortes para lutar contra o estranho sinistro;
  • o estranho sinistro vai tentar arrancar de nós a sabedoria.

A natureza dual das mulheres

Partes que destaco:

Essa história fala do mistério de duas poderosas forças femininas numa única mulher.

O ser exterior vive à luz do dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática,
aculturada e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e com freqüência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma sensação: algo de surpreendente, original e sagaz.

Da mesma forma, a mulher tem enormes poderes quando os aspectos duais individuais são reconhecidos consciente-mente e considerados como uma unidade; mantidos unidos em vez de separados. O poder de ser dois é muito forte, e nenhum dos dois lados deve ser negligenciado. Eles precisam ser alimentados da mesma forma, pois juntos proporcionam ao indivíduo um poder excepcional.

Na história, o pai das gêmeas age como guardião do par místico. Ele simboliza uma característica intrapsíquica real que garante a integridade de coisas que "ficam juntas" e que não são separadas. É ele que testa o valor, a "correção" do pretendente. Ter um guardião desse tipo é bom para as mulheres.

Uma psique saudável que contenha um guardião paternal não aceita simplesmente qualquer pensamento, atitude ou pessoa, apenas aquelas que são sensíveis ou que se esforçam para sê-lo.

A sedução furtiva dos apetites

Não é por acaso que homens e mulheres se esforçam para descobrir o lado mais profundo da sua natureza e, no entanto, têm sua atenção desviada por inúmeras razões, em sua maioria prazeres de diversos tipos. Alguns tornam-se dependentes dessas preferências e ficam para sempre enredados nelas, sem conseguir jamais continuar seu trabalho.

O cãozinho a princípio também é distraído pelo seu apetite. Os apetites são muitas vezes forajidos pequenos e encantadores, ladrões, dedicados ao roubo do tempo e da libido.


Jung observou que é preciso impor algum controle aos apetites humanos.

Podem se esquecer do que os motivava a agir.

Existem elementos na psique de todo mundo que são traiçoeiros, trapaceiros e maravilhosos. Esses elementos são inimigos da conscientização. Eles vicejam por manter tudo oculto e excitante.

A lembrança da verdadeira tarefa e sua repetida recordação dentro de nós mesmas, no estilo de um mantra, nos devolverá a consciência.

A conquista da ferocidade

O estranho sinistro pode ser encarnado por uma pessoa verdadeira no mundo exterior ou por um complexo negativo interno. Não importa qual seja a apresentação, o efeito devastador é o mesmo.

Isso pode ocorrer na vida objetiva quando um incidente, um lapso, algum acontecimento estranho de
qualquer natureza, surge de repente e tenta nos fazer esquecer quem nós somos.

Às vezes o único meio de aprendermos a nos manter fiéis ao nosso conhecimento profundo resulta do surgimento desse estranho à nossa frente. Somos, então, forçadas a lutar pelo que prezamos — lutar para ter firmeza naquilo a que nos dedicamos, lutar para superar nossas motivações espirituais mais superficiais, o que Robert Bly chama de "desejo de se sentir maravilhoso", lutar para terminar o que iniciamos.

Mulheres que correm com os lobos

sábado, 9 de setembro de 2017

Conto Manawee



Era uma vez um homem que vinha cortejar duas irmãs gêmeas.
— Você não poderá se casar com elas a não ser que consiga adivinhar seus nomes — dizia, porém, o pai das moças. Manawee tentava e tentava, mas não conseguia adivinhar os nomes das irmãs.



O pai das moças abanava a cabeça e mandava Manawee embora todas as vezes. Um dia Manawee levou seu cachorrinho junto numa visita de adivinhação, e o cachorro percebeu que uma irmã era mais bonita do que a outra e que a outra era mais delicada do que a primeira. Embora nenhuma das duas irmãs possuísse todas as virtudes, o cachorrinho gostou muito delas porque elas lhe deram petiscos e sorriram olhando fundo nos seus olhos.

Também naquele dia Manawee não conseguiu adivinhar os nomes das jovens e voltou irritado para casa. O cachorrinho, porém, voltou correndo para a choupana das irmãs. Ali ele enfiou a orelha por baixo de uma das paredes laterais e ouviu as moças dando risinhos e falando sobre como Manawee era bonito e másculo. Enquanto falavam, as irmãs se chamavam mutuamente pelo nome, e o cachorrinho, tendo ouvido, voltou correndo com a maior velocidade possível para seu dono para
lhe passar a informação.

No caminho, porém, um leão havia deixado um grande osso ainda com carne perto do caminho, e o minúsculo cachorrinho sentiu imediatamente o cheiro, não pensou em mais nada e se desviou mato adentro arrastando o osso. Ali, ele lambeu e mordiscou o osso com grande prazer até que todo o sabor desapareceu. Ah! O pequeno cãozinho de repente se lembrou da tarefa esquecida, mas infelizmente ele também havia esquecido os nomes das moças.


Por isso, ele correu de volta à choupana das gêmeas e dessa vez já era de noite e as jovens estavam passando óleo nos braços e pernas uma da outra e se arrumando como se fosse para uma festa. Mais uma vez o cãozinho as ouviu chamando-se mutuamente pelo nome. Ele deu pulos de alegria e estava correndo pelo caminho afora na direção da choupana de Manawee quando do meio do mato veio o aroma de noz-moscada fresca. Ora, não havia nada que o cachorrinho adorasse mais do que noz-moscada. Por isso, ele se desviou um pouco do caminho e correu para o lugar onde uma bela torta de laranjas estava esfriando em cima de uma tora. Bem, logo a torta já não existia mais, e o cachorrinho tinha um adorável hálito de noz-moscada. Enquanto trotava de volta para casa com a pança cheia, tentou pensar nos nomes das moças, mas, mais uma vez, ele os havia esquecido.

Finalmente, o cachorrinho tornou a voltar correndo até a choupana das irmãs, e dessa vez as irmãs estavam se preparando para se casar. "Ah, não!" pensou o cachorrinho, "quase não tenho mais tempo." E, quando as irmãs se chamaram pelo nome, ele guardou os nomes na mente e saiu em disparada, com a determinação resoluta e absoluta de que nada iria impedi-lo de transmitir os preciosos nomes a Manawee imediatamente.

O cãozinho vislumbrou caça pequena recém-morta no caminho, mas a ignorou e saltou por cima dela. Por um instante, pareceu-lhe sentir o aroma de noz-moscada no ar, mas ele o ignorou e preferiu continuar correndo na direção da sua casa e do seu dono. No entanto, ele não contava com a possibilidade de um estranho de negro saltar do mato, agarrá-lo pelo pescoço e sacudi-lo ao ponto de seu rabo quase cair.

Pois, foi o que aconteceu.
— Diga-me aqueles nomes! Diga-me os nomes das moças para que eu as possa conquistar — gritava o estranho o tempo todo.
O cãozinho achou que ia desmaiar com aquele punho lhe apertando o pescoço, mas lutou com bravura. Ele rosnou, arranhou, esperneou e, afinal, mordeu o estranho entre os dedos. Os dentes do animal picavam como vespas. O estranho berrava como um búfalo-da-índia, mas o cãozinho não o soltava. O estranho correu pelo mato adentro com o cãozinho pendurado numa das mãos.
— Solte-me, solte-me, cãozinho, e eu o soltarei — implorou o estranho de negro.
— Não me volte por aqui — rosnou entre dentes o cãozinho — ou não verá mais a luz do dia. — E assim o estranho fugiu pelo mato, gemendo enquanto corria. O cachorrinho prosseguiu meio mancando, meio correndo, pelo caminho até encontrar Manawee.

Muito embora seu pêlo estivesse sujo de sangue e suas mandíbulas doessem, os nomes das jovens estavam bem nítidos na sua mente, e ele se aproximou de Manawee, claudicante, mas feliz da vida. Manawee lavou os ferimentos do cãozinho, e este lhe contou toda a história assim como o nome das moças. Manawee correu de volta até a aldeia das moças com o cachorrinho nos ombros, e as orelhas do cachorro dançavam ao vento como rabos de cavalos.

Quando Manawee chegou até o pai com os nomes das filhas, as gêmeas receberam Manawee completamente vestidas para viajar com ele. Elas haviam estado à sua espera o tempo todo. Foi assim que Manawee conquistou duas das donzelas mais belas da região. E todos os quatro, as irmãs, Manawee e o cãozinho, viveram juntos em paz por muito tempo. Krik Krak Krout, now this story is out. Krik Krak Krun, now this story is done.


Do livro "Mulheres que correm com os lobos".