segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Pele de foca, pele de alma - Capítulo 9 - Mulheres que correm com os lobos


A volta ao lar: O retorno ao próprio Self




"A história nos fala de onde realmente viemos, do que somos feitas e de como todas nós precisamos, com regularidade, usar nossos instintos e descobrir o caminho de volta ao lar."

No dia 06 desse mês tivemos o encontro de mulheres e discutimos sobre o capítulo 9 do livro Mulheres que correm com os lobos. Abaixo uma foto sobre o encontro. Está com quatro meses que iniciei a leitura desse livro.


A sensação que tenho é que a leitura, apesar de parecer aleatória, entra em sintonia com o que tenho vivenciado. O Universo é mágico!!!

Esse foi o capítulo mais rabiscado de todos os tempos!!! Hahaha

Uma coisa importante que temos que sempre fazer ao ler os textos de Clarissa é: tente ser todos os personagens da história: a mulher foca, Ooruk (o ser medial), e também seja o caçador solitário...

Como é ser cada um deles?

Resuminho...

A história fala de uma mulher foca que estava junto de suas irmãs/amigas focas, mas ela por um momento de descuido fica longe da sua pele de foca, aí o caçador solitário vem e pega a pele, e diz que só devolve a pele à mulher-foca se ela passar 7 verões com ele. Ela então aceita, fica esse período com ele e juntos têm um filho. Mas aí a mulher-foca começa a secar, fica tipo triste, com os olhos sem brilho e percebe que "está na hora de voltar pro lar". E esse é um dos principais ensinamentos do conto, que precisamos de tempos em tempos retornar para o nosso lar espiritual.
Para ler o conto na íntegra, clique aqui



Destrinchando o capítulo:

Pontos principais: 

A perda do sentido de alma como iniciação:

"Como a mulher-foca da história, e como a alma de mulheres jovens e/ou inexperientes, ela não percebe as intenções dos outros e o perigo em potencial. E é sempre aí que a pele da foca é roubada."

Como é esse roubo da pele? Pele é como se fosse uma proteção. A dra Clarisse diz que algumas pessoas dizem que é como se fosse um "roubo da sua 'grande oportunidade' da vida". Outros descrevem o fato como "uma distração, uma ruptura, uma interferência ou interrupção de algo que lhes é vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços."

O roubo cai nas mulheres em virtude da ingenuidade, da percepção falha quanto às motivações dos outros.

Ela diz que as pessoas que permitem ser roubadas não são más, nem erradas, nem tolas, elas são inexperientes! Estão num "cochilo psíquico".

Nesse momento, a mulher pode decidir RESGATAR O TESOURO, reabastecendo o self.

Quatro constructos vitais da psique:

1) Fortalece extremamente nossa determinação de lutar pelo resgate do inconsciente;
2) Esclarece, com o passar do tempo, o que é mais importante para nós;
3) Ele nos preenche com a necessidade de ter um plano para nos libertarmos, em termos psiquicos ou outros, e de pôr em cena nossos conhecimentos recém-adquirido.
4) Desenvolve nossa natureza medial, aquela parte selvagem e sagaz da psique que também pode permear o mundo da alma e o mundo dos humanos.



"Uma das questões mais cruciais e de maior potencial destrutivo enfrentadas pelas mulheres consiste no fato de elas começarem vários processos de iniciação psicológica sem iniciadores que tenham eles próprios completado o processo. Elas não conhecem pessoas maduras que saibam como prosseguir. Quando os próprios iniciadores são pessoas cuja iniciação está incompleta, eles omitem aspectos importantes do processo sem perceber, e às vezes causam grandes males ao iniciando por trabalharem com uma ideia fragmentada da iniciação, uma idéia que freqüentemente está contaminada de uma forma ou de outra."

A perda da pele:

"Toda mulher afastada do lar da sua alma acaba se cansando. É então que ela procura sua pele de foca para revitalizar seu sentido de identidade e de alma, para restaurar seu conhecimento penetrante e
oceânico."

E quando é que perdemos a pele da alma?



"Perdemos a pele da alma quando ficamos muito envolvidas com o ego, quando nos tornamos por demais exigentes, perfeccionistas, quando nos martirizamos desnecessariamente, somos dominadas por uma ambição cega ou quando nos sentimos insatisfeitas — com o próprio self, com a família, a comunidade, a cultura, o mundo — e não fazemos nem dizemos nada a respeito disso; também quando fingimos ser uma fonte ilimitada para os outros quando não fazemos o possível para nos ajudar. Ora, existem tantos modos para se perder a pele da alma quantas são as mulheres do mundo."

"O único meio de permanecer agarrada a essa essencial pele da alma consiste em manter uma conscientização delicadamente imaculada a respeito dos seus valores e utilidades."

O homem solitário:

O homem representa o ego da psique da mulher. Clarissa afirma que no início da vida é o ego que que frequentemente manda. "Ele relega a alma aos trabalhos mesquinhos da cozinha."

"No entanto, em algum ponto, às vezes quando estamos com vinte anos, às vezes com trinta, com maior freqüência aos quarenta anos, muito embora algumas mulheres só estejam realmente prontas depois dos cinqüenta, dos sessenta ou mesmo dos setenta ou oitenta, começamos, afinal, a permitir que a alma assuma o comando. O poder passa, então, dos detalhes e minúcias práticas para o envolvimento da alma."

A criança espiritual:

A criança é o resultado da união entre o ego e a alma. A criança (Ooruk) tem a capacidade de ouvir o chamado.


É um ser medial.

O definhamento e a invalidez:

"A maioria das depressões, tédios e confusões errantes da mulher é causada por uma severa restrição da vida da alma, na qual a inovação, o impulso e a criatividade são proibidos ou limitados."

Nessa parte Clarissa coloca uma história que se quiser ler na íntegra, coloco aqui: O terno

Clarissa fala que a atitude o segundo velho é uma coisa natural, a mulher precisa manter uma postura impecável, mesmo que para isso precise ficar aleijada.

Ouvindo o chamado da Mais Velha:

Na história quem ouve o chamado é a "pequena criança espiritual".

"A inquietação da mulher durante esse período vem muitas vezes acompanhada de irritabilidade e de uma sensação de que tudo está perto demais para ser agradável, ou longe demais para nos proporcionar paz. Ela se sente de alguma forma pouco e muito "perdida", pois ficou muito tempo longe de casa."

A demora excessiva:

"Quando a mulher passa tempo demais longe de casa, sua capacidade de perceber como está se sentindo a respeito de si mesma e de todas as outras coisas começa a secar e a rachar. Ela está no "estado de lemingue"."

"Quando a mulher fica muito tempo longe do seu lar, ela se torna cada vez menos capaz de avançar na vida. Em vez de optar por arreios de sua própria escolha, ela como que fica pendurada na vontade dos outros."

"A "ninhada morta" é composta de ideias, deveres, exigências que não funcionam, que não têm vida e que não geram vida. Uma mulher assim torna-se pálida, apesar de briguenta; passa a ser cada vez mais inflexível, embora dispersa. Seu pavio vai ficando cada vez mais curto."

"Uma mulher de iniciação incompleta nesse estado de privação acredita erroneamente obter maior vantagem espiritual ficando do que indo embora."

A mulher precisa entender essa necessidade por si mesma. E essa volta da mulher ao lar espiritual permite aos outros que eles também busquem isso. Elas precisam voltar ao lar espiritual mesmo que isso irrite aos outros, pois ela volta mais forte.

A separação, o mergulho:

No momento de volta ao lar, volte. Quando está na hora, está na hora.

"Todas nós temos nossos métodos preferidos para nos convencer a não tirar o tempo necessário para a volta ao lar. No entanto, quando resgatamos nossos ciclos instintivos e selváticos, ficamos sob a obrigação psíquica de organizar nossa vida para que possamos vivê-la cada vez mais em harmonia."

"Por quanto tempo a pessoa fica no lar espiritual? O máximo de tempo possível, ou até que você seja novamente dona de si mesma. Com que freqüência é necessária essa volta? Com uma freqüência muito maior se você for uma pessoa "sensível" e muito ativa no mundo objetivo. Algo menos se você for um pouco insensível e não se "expuser" tanto."

A mulher medial: A que respira debaixo d'água:

A mulher medial se posiciona entre o mundo da realidade consensual e o do inconsciente místico, fazendo mediação entre eles. Ela é o transmissor e o receptor entre dois ou mais valores ou idéias.

Um dos efeitos da regularidade na volta ao lar está no fato de a mulher medial da psique sair fortalecida toda vez que a mulher vai e volta.

A volta à superfície:

Devemos voltar à nossa vida diária impregnadas por um novo ânimo!

A prática da solidão voluntária:

Serve para curar a fadiga e evitar o cansaço...

Como podemos invocar a alma? "Há muitas formas: pela meditação, pelos ritmos da corrida, do toque de tambor, do canto, do ato de escrever, da pintura, da composição musical, de visões de grande beleza, da oração, da contemplação, dos ritos e rituais, de ficar parada e até mesmo de idéias e disposições de ânimo arrebatadoras."

"Há muitos aspectos da nossa vida que devemos avaliar com constância: o ambiente, o trabalho, a vida criativa, a família, o parceiro, os filhos, mãe/pai, a sexualidade, a vida espiritual e assim por diante."

A ecologia inata às mulheres:

"Mesmo que tenhamos trabalhado, feito sexo, descansado ou brincado fora dos ciclos, isso não mata a Mulher Selvagem; só nos deixa exaustas."

"É com o amor e o cuidado com nossas fases naturais que protegemos nossa vida para que ela não seja arrastada pelo ritmo de outra pessoa, pela dança de outra pessoa, pela fome de outra pessoa."

"Culturas excessivamente civilizadas e repressoras tentam impedir as mulheres de voltar para
casa."

Finalizo com: Nas palavras de Jung, "seria muito melhor simplesmente admitir nossa pobreza espiritual. ...Quando o espírito fica pesado, ele se transforma em água. ...Portanto, o caminho da alma... conduz à água"

O que eu entendi das palavras de Jung? Nada... Mas o capítulo 10 (próximo em ordem) é "Águas claras" pode ser que dra Clarissa me explique!!! :)

Boa leitura!!!

O terno - História complementar do capítulo 9



Um homem veio a um szabó, alfaiate, para experimentar terno. Parado diante do espelho, ele percebeu que o colete estava um pouco irregular na parte inferior.
— Ora — disse o alfaiate. — Não se preocupe com isso. Basta você puxar a ponta mais curta para baixo com a mão esquerda, que ninguém jamais vai perceber nada.

Enquanto o cliente fazia exatamente isso, ele notou que a lapela do paletó estava com uma ponta enrolada em vez de estar rente.
— Isso? — perguntou o alfaiate. — Isso não é nada. É só você virar a cabeça um pouquinho e segurar a lapela no lugar com o queixo.

O freguês obedeceu e, quando o fez, observou que a costura de entrepernas estava meio curta e que o gancho lhe parecia um pouco apertado demais.
— Ora, nem pense nisso. Puxe o gancho para baixo com a mão direita, e tudo vai ficar perfeito. — O freguês concordou e comprou o terno.

No dia seguinte, o homem estreou o terno com todas as alterações de queixo e mãos. Enquanto ia mancando pelo parque com o queixo segurando a lapela no lugar, uma das mãe puxando o colete, e a outra mão agarrada ao gancho, dois velhos pararam de jogar damas para vê-lo passando com dificuldade.
— M'Isten, meu Deus! — disse o primeiro velho. — Veja aquele pobre aleijado.
O segundo homem refletiu por um instante antes de sussurrar.
— Igen, é, ele é bem aleijado mesmo, mas sabe o que eu queria saber... onde será que ele comprou um terno tão elegante?

Do livro Mulheres que correm com os lobos

Conto Pele de foca, pele da alma

Pele de foca, pele da alma

Houve um tempo, que passou para sempre e que irá logo estar de volta, em que um dia corre atrás do outro de céus brancos, neve branca... e todos os minúsculos pontinhos escuros ao longe são pessoas, cães, ou ursos.

Nesse lugar, nada viceja gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas se acostumaram a trazer consigo seus parkas, mamleks e botas, já de propósito. Nesse lugar, as palavras se congelam ao ar livre, e frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios de quem fala e descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que foi dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha Annuluk, a avó, a velha feiticeira que é a própria Terra. E foi nessa terra que vivia um homem...
um homem tão solitário que, com o passar dos anos, as lágrimas haviam aberto fundos abismos no seu rosto.

Ele tentava sorrir e ser feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia bem. No entanto, sentia falta de companhia. Às vezes, lá nos bancos de areia, no seu caiaque, quando uma foca se aproximava, ele se lembrava de antigas histórias sobre como as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia nessas ocasiões uma solidão tão profunda que as lágrimas escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.

Uma noite ele caçou até depois de escurecer, mas sem conseguir nada. Quando a lua subiu no céu e as banquisas de gelo começaram a reluzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no mar e seu olhar aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos sobre a velha rocha.

Ele remou lentamente e com os remos bem fundos para se aproximar, e lá no alto da rocha imponente dançava um pequeno grupo de mulheres, nuas como no primeiro dia em que se deitaram sobre o ventre da mãe. Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano a não ser na lembrança — e ele ficou ali olhando. As mulheres pareciam seres feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com
gotículas prateadas como as do salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e graciosos.



Elas eram tão lindas que o homem ficou sentado, atordoado, no barco, e a água nele batia, levando-o cada vez mais para junto da rocha. Ele ouvia o riso magnífico das mulheres... pelo menos elas pareciam rir, ou seria a água que ria às margens da rocha? O homem estava confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e, quase sem pensar, como se fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou uma das peles de
foca ali jogadas. Ele se escondeu por trás de uma saliência rochosa e ocultou a pele de foca dentro do seu qutnquq, parka.

Logo, uma das mulheres gritou numa voz que era a mais linda que ele já ouvira... como as baleias chamando na madrugada... ou não, talvez fosse mais parecida com os lobinhos recém-nascidos caindo aos tombos na primavera... ou então, não, era algo melhor do que isso, mas não fazia diferença porque... o que as mulheres estavam fazendo agora?

Ora, elas estavam vestindo suas peles de foca, e uma a uma as mulheres-focas deslizavam para o mar, gritando e ganindo de felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas procurava por toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar nenhum. O homem sentiu-se estimulado — pelo quê, ele não sabia. Ele saiu de trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
— Mulher... case-se... comigo. Sou um... homem... sozinho.
— Ah — respondeu ela. — Eu não posso me casar, porque sou de outra natureza, pertenço aos que vivem temeqvanek, lá embaixo.
— Case-se... comigo — insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.



A jovem mulher-foca ficou olhando muito tempo o rosto do homem com olhos que, se não fossem suas origens verdadeiras, pareciam humanos.
— Irei com você — disse ela, relutante. — Dentro de sete verões, tomaremos a decisão.

E assim, com o tempo, tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk. A criança era ágil e gorda. No inverno, a mãe contava a Ooruk histórias de seres que viviam no fundo do mar enquanto o pai esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a mãe levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da ventilação as nuvens e todas as suas formas. Só que, em vez de falar das formas do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias da vaca-marinha, da baleia,
da foca e do salmão... pois eram essas as criaturas que ela conhecia.

No entanto, à medida que o tempo foi passando, sua pele começou a ressecar. A princípio, ela escamou e depois passou a rachar. A pele das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo da sua cabeça, a cair no chão. Ela se tornou naluaq, do branco mais pálido. Suas formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse, iam ficando mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear porque sua vista estava escurecida.

E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.

— Você escondeu minha pele de foca há sete longos anos, e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que me seja devolvido aquilo de que sou feita — gritou a mulher-foca.
— E você, mulher — vociferou o marido. — Você me deixará se eu lhe der a pele.
— Não sei o que eu faria. Só sei que preciso daquilo a que pertenço.
— E você me deixaria sem mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.

Com essas palavras, o marido afastou com violência a pele da porta e desapareceu noite adentro.

O menino adorava a mãe. Ele tinha medo de perdê-la e, por isso, chorou até dormir... só para ser acordado pelo vento. Um vento estranho... que parecia chamá-lo.
— Oooruk, Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluks até a metade. Ao ouvir seu nome chamado insistentemente, ele saiu correndo na noite estrelada.
— Ooooooorukkk.

O menino correu até o penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme.

Seus bigodes lhe caíam até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
— Ooooooorukkk.

O menino foi descendo o penhasco de qualquer jeito e bem junto à base tropeçou numa pedra, não, numa trouxa, que rolou de uma fenda na rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto como milhares de açoites de gelo.
— Ooooooorukkk.



O menino abriu a trouxa e a sacudiu: era a pele de foca da sua mãe. Ah, ele sentia seu perfume na pele inteira. E, enquanto mergulhava o rosto na pele de foca e respirava seu cheiro, a alma da mãe penetrava nele como um súbito vento de , verão
— Ah — exclamou ele com alegria e dor, e levou novamente a pele ao rosto.

Mais uma vez, a alma da mãe passou pela dele. — Ah!!! — gritou ele de novo, porque estava sendo impregnado pelo amor infindo da mãe.

E a velha foca prateada ao longe mergulhou lentamente para debaixo d'água.

O menino escalou o penhasco, voltou correndo para casa com a pele de foca voando atrás dele e se jogou para dentro de casa. Sua mãe contemplou o menino e a pele e fechou os olhos, cheia de gratidão pelo fato de os dois estarem em segurança.

Ela começou a vestir sua pele de foca.
— Ah, mãe, não! — gritou o menino. Ela apanhou o menino, ajeitou-o debaixo do braço e saiu correndo aos trambolhões na direção do mar revolto.
— Ai, mamãe, não me abandone! — implorava Ooruk. E logo dava para se ver que ela queria ficar com o filho, queria mesmo, mas alguma coisa a chamava, algo que era mais velho do que ele, mais velho do que ela, mais antigo que o próprio tempo.
— Ah, mamãe, não, não, não — choramingou a criança. Ela se voltou para ele com uma expressão de profundo amor nos olhos. Segurou o rosto do menino nas mãos e soprou para dentro dos pulmões do menino seu doce alento, uma vez, duas, três vezes. Depois, com o menino debaixo do braço como uma carga preciosa, ela mergulhou bem fundo no mar e cada vez mais fundo. A mulher-foca e seu filho não tinham dificuldade para respirar debaixo d'água.


Eles nadaram muito para o fundo até que entraram no abrigo subaquático das focas, onde todos os tipos de criaturas estavam jantando e cantando, dançando e conversando, e a enorme foca prateada que havia chamado Ooruk de dentro do mar da noite abraçou o menino e o chamou de neto.
— Como você está se saindo lá em cima, minha filha? — perguntou a grande foca prateada.

A mulher-foca afastou o olhar e respondeu.
— Magoei um ser humano... um homem que deu tudo para que eu ficasse com ele. Mas não posso voltar para ele, porque, se o fizer, estarei me transformando em prisioneira.
— E o menino? — perguntou a velha foca. — Meu neto? — Ele estava tão orgulhoso que sua voz tremia.
— Ele tem de voltar, meu pai. Ele não pode ficar aqui. Ainda não chegou o seu tempo de ficar conosco. — Ela chorou. E juntos eles choraram.



E assim passaram-se alguns dias e noites, exatamente sete, período durante o qual voltou o brilho aos cabelos e aos olhos da mulher-foca. Ela adquiriu uma bela cor escura, sua visão se recuperou, seu corpo voltou às formas arredondadas, e ela nadava com agilidade. Chegou, porém, a hora de devolver o menino à terra. Nessa noite, o avô-foca e a bela mãe do menino nadaram com a criança entre eles. Vieram subindo, subindo de volta ao mundo da superfície. Ali eles depositaram Ooruk
delicadamente no litoral pedregoso ao luar.

— Estou sempre com você — afiançou-lhe sua mãe. — Basta que você toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu, faca, minhas esculturas de pedra de focas e lontras, e eu soprarei nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas canções.

A velha foca prateada e sua filha beijaram o menino muitas vezes. Afinal, elas se afastaram, saíram nadando mar adentro e, com um último olhar para o menino, desapareceram debaixo d'água. E Ooruk, como ainda não era a sua hora, ficou.

Com o passar do tempo, ele cresceu e se tornou um famoso tocador de tambor, cantor e inventor de histórias. Dizia-se que tudo isso decorria do fato de ele, quando menino, ter sobrevivido a ser carregado para o mar pelos enormes espíritos das focas.

Agora, nas névoas cinzentas das manhãs, ele às vezes ainda pode ser visto, com seu caiaque atracado, ajoelhado numa certa rocha no mar, parecendo falar com uma certa foca fêmea que freqüentemente se aproxima da orla. Embora muitos tenham tentado caçá-la, sempre fracassaram. Ela é conhecida como Tanqigcaq, a brilhante, a sagrada, e dizem que, apesar de ser foca, seus olhos são capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas.

Do Livro Mulheres que Correm com os Lobos

A mulher esqueleto - Capítulo 5 - Mulheres que correm com os lobos

A caçada: Quando o coração é um caçador solitário

A Mulher-esqueleto: encarando a natureza de vida-mortevida
do amor

Para ler o conto clique aqui

Diferentemente dos seres humanos, os lobos não consideram que os altos e baixos da vida, quer de energia, de poder, de alimento, quer de oportunidade, sejam espantosos ou punitivos.

A natureza instintiva tem a capacidade miraculosa de sobreviver a cada dádiva positiva, a cada conseqüência negativa, e ainda manter o relacionamento com o self e com o outro.

As histórias das regiões próximas ao pólo descrevem o amor como a união entre dois seres cuja força
reunida permite a um deles, ou a ambos, a entrada em comunicação com o mundo da alma e a participação no destino como uma dança com a vida e a morte.

Existem, porém, exigências para esse tipo de união. A fim de criar esse amor duradouro, convida-se mais um parceiro para a união. Esse terceiro é a Mulher esqueleto. Ela é também chamada de A Morte e, nesse sentido, ela é a natureza da vida-morte-vida num dos seus muitos disfarces. Nessa sua apresentação, A Morte não é um mal. mas uma divindade.

O conto é uma antiga história do povo inuit, e nele estão os estágios psíquicos para o domínio desse abraço (com a mulher esqueleto).

Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria, da Mulher esqueleto.

Parei de escrever esse post aqui no dia 18 de setembro e retorno somente hoje, dia 23 de outubro... Parei porque estava muito focada nos estudos, nesse intervalo, fui a um encontro de mulheres e li o capítulo 9 (Pele de foca), é incrível como os capítulos estão fluindo bem com os acontecimentos dos meus dias e do meu crescimento pessoal...

Bom, o que é esse capítulo? Esse capítulo fala que o amor é quando encaramos a Mulher Esqueleto, é quando vemos que nos relacionamentos existe sempre algo que você não deseja, não quer, sente repulsa... Achei tão forte o capítulo e chorei quando li, porque percebi que eu e meu companheiro conhecemos o pior de cada um de nós e mesmo assim, amamos um ao outro e mesmo assim admiramos.

Finalizo o post com esse trecho do livro:

"Parece tão repulsivo, mas esse é o momento perfeito em que se apresenta uma verdadeira oportunidade de demonstrar coragem e de conhecer o amor. 

Amar significa ficar com. 

Significa emergir de um mundo de fantasia para um mundo em que o amor duradouro é possível, cara a cara, ossos a ossos, um amor de devoção.

Amar significa ficar quando cada célula nos manda fugir."